Texto publicado originalmente em 2013 como capítulo do livro Copyfight: Pirataria & Cultura Livre (ISBN 978-85-7920-098-4), editado por Adriano Belisário e Bruno Tarin.
Já estamos há algum tempo criticando o copyright. Hoje, todo mundo do nosso lado do rio sabe que licenças fechadas e proprietárias estabelecem uma série de restrições à circulação de conhecimento e cultura. Tipicamente, autorizam somente o uso individual e doméstico, enquanto que condicionam todas as outras possibilidades à autorização expressa de autores ou atravessadores. Isso é anacrônico, improdutivo e estúpido. Alguém aí discorda? Legal, vamos além.
Olhando para o lado de cá, grande parte das licenças livres que se popularizaram nos últimos anos (em especial as licenças Creative Commons, mas também similares como GNU-FDL, GPL, Arte Livre...) contentam-se em, simplesmente, reagir às restrições do copyright. Contrapõem ao “todos os direitos reservados” o “alguns direitos reservados”, mas não refletem mais a fundo sobre a natureza da criação colaborativa.
Um conhecido vídeo didático do Creative Commons, por exemplo, mostra um baixista que modificou, por conta própria, uma música da banda White Stripes. Segundo o vídeo, as licenças Creative Commons possibilitariam e potencializariam esse tipo de colaboração remota, à medida que criam um dispositivo jurídico definido de antemão que elimina a necessidade de mediação jurídica entre o baixista e a banda. Posso concordar com isso, mas é um exemplo limitado a uma situação específica: de um lado uma banda inserida no complexo da indústria fonográfica, do outro um músico independente. Casos como esse são uma parte ínfima do universo de possibilidades de produção criativa colaborativa.
Colaboração não é uma novidade na produção cultural e intelectual. Virtualmente, qualquer campo de produção de conhecimento e cultura tem sua própria tradição de produções colaborativas relevantes. Sabemos que a colaboração é tanto mais potente quanto mais comunicação e troca existir entre as partes envolvidas. No caso do White Stripes, a troca foi mínima: uma música já finalizada e publicada foi acrescida de uma linha de contrabaixo. O baixista e a banda não se afetaram mutuamente, não contrapuseram perspectivas, não negociaram conflitos. Se isso é produção colaborativa, é uma produção colaborativa de baixo envolvimento. Colaboração sem contato, sem toque, distanciada, “civilizada” e fria. Em vez de possibilitar processos mais humanos, diversos e abrangentes, tais licenças podem pelo contrário incentivar o isolamento.
Essa distorção acontece porque tais licenças “abertas” concentram-se muito mais na questão da distribuição de material finalizado do que em potencializar processos efetivamente colaborativos. De certa forma, essas licenças caem em uma normatividade imposta pelo mercado, que acredita que a “obra” (finalizada, fechada, empacotada, publicada) é mais importante do que o processo que a gerou. Eu discordo dessa visão. Acredito que podemos usar licenças como ferramentas táticas, justamente para aumentar o envolvimento de pessoas, fazê-las saírem da rotina, possibilitar que compartilhem seus repertórios e insights, que abram seus processos criativos e até a si próprias para a diversidade, a troca, o afeto e a construção coletiva.
Difícil é começar. Que tal pensar em licenças mais poéticas? Licenças que questionem a própria função do licenciamento. Por exemplo:
- Esta música pode ser utilizada, decomposta, “remisturada” e redistribuída de todas as formas tecnicamente possíveis, desde que você mande um e-mail para o autor escrevendo “Tcharam!” no campo de Assunto.
- Este vídeo pode ser assistido sem som em semanas de lua cheia.
- Este disco deve ser ouvido por pelo menos cinco pessoas dançando em roda. Qualquer outro uso constituirá quebra de licença e enfrentará as sanções legais. Nós sabemos quando você dança.
- Este texto pode ser distribuído, reproduzido, modificado e ter todas as suas palavras reordenadas por mulheres de escorpião e homens com barba por fazer.
- Para autorizar todo uso possível desta ideia (acesso, modificação, remixagem, redistribuição e o que mais quiseres), feche os olhos e visualize o autor sendo abraçado por mil pessoas sorridentes.
Esse tipo de decisão pode ter pouca utilidade prática, mas sugere formas mais aprofundadas de relacionamento entre pessoas que se dizem colaborativas do que as licenças que se propõem eficientes, automáticas e frias. Vamos pensar o próprio licenciamento como espaço criativo!